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Gagueira e subjetividade


Silvia Friedman

A gagueira tem sido, atualmente, um tema bastante polêmico. Um tema que suscita mais dúvidas do que certezas, tanto por parte dos profissionais que tradicionalmente lidam com ela, ou seja - fonoaudiólogos, psicólogos, médicos e, em certa medida, também os professores - quanto por parte da população em geral. Acredito que isso se deva, em boa parte, ao fato de não haver, ainda, um consenso sobre a natureza do fenômeno, conseqüentemente, sobre a forma de abordá-lo, seja nas relações de comunicação do cotidiano como as que se estabelecem entre pais e filhos, por exemplo; seja nas relações clínico-terapêuticas que se estabelecem entre indivíduos que se queixam de gagueira e os profissionais que eles procuram.

Entendo, também, que essa falta de consenso se deve ao fato de que a produção de fala com gagueira não é determinada por um único fator. Várias são as condições que podem estar ligadas a essa forma de produção. Algumas, restritas exclusivamente ao organismo (ao corpo), outras, ligadas ao psiquismo e, nesse âmbito, algumas ligadas ao processo pensamento/fala, outras aos sentimentos e emoções e ainda todas as condições agindo em conjunto, sem desconsiderar, evidentemente, o aspecto social agindo sobre elas.

Ainda está por ser escrita uma obra que analise, detida e detalhadamente, todas as condições que podem estar associadas à produção de fala com gagueira e que descreva as diferenças subjetivas e objetivas entre os indivíduos que manifestam essas produções.

Nessas condições, esclareço que estou falando aqui de minha experiência como terapeuta e pesquisadora com o tipo de gagueira que é produzida por pessoas que, sob certas circunstâncias - das quais falar sozinho me parece a mais exemplar-, também podem falar muito fluentemente. Há 25 anos, venho me dedicando fundamentalmente ao atendimento desse tipo de pessoas, bem como à pesquisa das condições ligadas a esse padrão de fala. E isso me coloca diante de algumas certezas que gostaria de compartilhar.

Em primeiro lugar, as pesquisas e o trabalho clínico-terapêutico que venho desenvolvendo nesses anos todos apontam, com clareza, que para compreender a manifestação da gagueira é preciso levar em conta todo o contexto de produção da fala, o que implica não dicotomizar corpo e mente. E não dicotomizar corpo/mente implica levar em conta, também, a influência que o social exerce sobre eles. Dito de outra forma: para entender o processo de aparecimento e desaparecimento da gagueira na fala dos indivíduos, é preciso estudá-lo a partir das relações entre linguagem e psiquismo, as quais envolvem relações entre o organismo, a subjetividade e a sociedade.

Lançando um pouco o nosso olhar para os elementos dessas relações temos que, do ponto vista orgânico, cada ser humano tem suas peculiaridades, suas características, em termos de tendências maiores ou menores para ser fluente/disfluente, dentro de uma possibilidade de variação inerente, aliás, a qualquer habilidade humana: motora ou intelectual. Para ilustrar essa idéia, costumo dizer, guardadas as devidas proporções, que todos temos duas pernas, mas poucos somos capazes de jogar bola como Pelé.

Esse desenvolvimento do indivíduo, de acordo com suas tendências orgânicas, relaciona-se às condições do meio, e, dentro delas, os tipos de relacionamentos que se estabelecem com os outros. As condições do meio, os relacionamentos, podem facilitar ou prejudicar o desenvolvimento do indivíduo. No que se refere à linguagem (que se desenvolve basicamente a partir do diálogo, do inter-relacionamento, da troca intersubjetiva) e dentro dela pensando na produção da fala, temos que considerar aspectos como o do tipo de valorização dada à fala da criança, que lhe permitirá desenvolver ou não confiança na sua produção; aspectos como o da existência ou não de oportunidades para falar que determinam maior ou menor quantidade de estresse para falar, para citar apenas dois aspectos relevantes.

A isso se soma a questão dos valores e crenças que o meio social, em diferentes épocas, constrói, mantém e veicula a respeito das diferentes manifestações humanas. Esses também determinam o desenvolvimento do indivíduo e, dentro dele, o da sua fala. Pesquisas recentes sobre a produção da fala mostram que a sociedade, tanto do ponto de vista leigo como do ponto de vista científico, compartilha uma visão idealizada da fluência, que se materializa na manifestação de comportamentos de estigmatização da fala disfluente. É interessante destacar que não existem estudos sobre as características da fala humana no que se refere a padrões de fluência e disfluência em diferentes faixas etárias, sob diferentes estados emocionais e em diferentes contextos, mas que, apesar disso, a literatura científica apresenta parâmetros para definir que quantidade de disfluência seria patológica ou não.

Isso nos faz ver que, tanto na arena dos saberes científicos como na do senso comum, as pessoas se pautam em definições “a priori” para fundamentar as freqüentes valorizações negativas ao padrão disfluente de fala, e essas reações atingem especialmente a fala da criança. E vêm freqüentemente amparadas pelo escudo da cientificidade, porque emitidas como pareceres autorizados por profissionais da área da saúde e/ou da educação.

Para ilustrar essa situação, numa recente pesquisa que foi apresentada no Congresso de Fonoaudiologia de Natal, comparamos a fala de duas crianças que estão em fila de espera para atendimento fonoaudiológico por serem consideradas gagas por suas mães, com a de duas pessoas adultas, famosas em nosso meio, consideradas fluentes: um entrevistador/humorista e um cantor. O estudo mostrou não haver diferenças significativas no padrão e freqüência de quebras na fala dos adultos e das crianças observadas, e o entrevistador/humorista foi quem apresentou a maior variação no padrão, mostrando quebras não apresentadas por nenhum dos outros sujeitos.

Tudo isso tem nos levado a algumas questões:

• Quem está autorizado a definir a quantidade e o tipo de gagueira que é normal ou não? Quais concepções de produção de fala estão apoiando essa definição?

• Devemos continuar pautando nossos julgamentos a respeito de gagueira em concepções apriorísticas?

• Existem variações nas concepções sobre a fala com gagueira em diferentes culturas?

• Quais conseqüências tudo isso tem para o desenvolvimento de fala dos indivíduos e para a atividade clínico-terapêutica voltada para a produção da fala?

Como se vê, existem vários aspectos que ainda precisam ser desenvolvidos para uma compreensão mais acurada sobre as características da fala fluente e sobre os processos de estigmatização da gagueira e suas decorrências.

Dentro do atual estado da arte, porém, e a partir das investigações que tenho realizado, compreendo que é possível, no mínimo, falar em dois estados da gagueira.

Um é o que venho chamando de gagueira natural, em que entendo a manifestação de gagueira como uma possibilidade de todo e qualquer falante, determinada por sua disposição individual (cognitiva, afetiva e motora), a qual recebe influências das condições encontradas no meio (concorrência para falar, reações dos ouvintes) e influências dos valores que aquele que fala atribui a si e a esse meio no momento em que fala.

O outro é o que venho chamando de gagueira-sofrimento, que entendo como um estado em que o indivíduo, como conseqüência da não aceitação de sua forma espontânea de falar (condição que só se torna possível nas relações de comunicação com os outros), passa a produzir sua fala antecipando, ou seja, projetando gagueira na fala ainda não falada, pela suposição de que assim evitará gaguejar. Isso, entretanto, não só não evita gaguejar, como provoca gagueira. Temos um falante que se vê com gagueira e, ao mesmo tempo, pretende não gaguejar. Um falante que quer falar e, ao mesmo tempo, pretende não gaguejar. Um falante que quer falar e, ao mesmo tempo, não quer falar como supõe que falará. A gagueira projetada sobre a fala futura gera conflito emocional e sua correspondente tensão muscular. Surge, assim, um padrão de fala com diferentes formas de tensão no momento da articulação.

Posso reconhecer, então, dois estados da gagueira que se diferenciam pelo estado subjetivo que o falante desenvolve sobre si. Esses estados determinam padrões de fala diferenciados. No estado da gagueira natural, o falante se mostra à vontade, descontraído, independentemente de produzir quebras ou não. No estado da gagueira-sofrimento, o falante se mostra tenso, rodeia as palavras, freqüentemente não diz o que pretendia, da forma como pretendia. O estado subjetivo de projetar gagueira no não falado, mina o processo natural/automático de produção da fala. E esses dois estados têm diferentes e significativas conseqüências sobre o desenvolvimento global dos sujeitos, destacando-se aí, evidentemente, as suas possibilidades de se produzirem como falantes.

Posso reconhecer também que o outro é o desencadeador do processo de sofrimento na fala e que esse outro, de acordo com o caso, pode estar localizado concretamente nas pessoas: pais, professores, amigos, etc., ou internalizado no próprio sujeito, que o introjeta ao compartilhar práticas discursivas estigmatizadoras do padrão gaguejado que permeiam o imaginário social.

Essas são algumas das minhas certezas sobre a natureza do tipo de gagueira que defini anteriormente.

No que se refere à atenção a esse tipo de gagueira penso, em primeiro lugar, na necessidade de promover mecanismos de conscientização social sobre essa dimensão idealizada/normatizadora da fala, que promove sofrimento e que vem se difundido, tranqüilamente, nos processos de socialização dos indivíduos. Acredito que é necessário abrir espaço na mídia para difundir conhecimentos científicos sobre a fala e a linguagem. Conhecimentos que permitiram a criação de uma nova mentalidade sobre a produção da fala e suas contingências no processo de desenvolvimento de linguagem; conhecimentos que possam devolver à gagueira a sua possibilidade natural de existir no imaginário social.

Penso que esta é a maneira mais direta, nos nossos dias, de promover discussões que garantam a superação de políticas públicas de atendimento à gagueira, pautadas na idealização de fluência e na conseqüente patologização das singularidades; ou, dizendo o mesmo de outro modo, a maneira mais direta de promover o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento à gagueira pautadas no respeito à singularidade dos indivíduos e, portanto, capazes de garantir o pleno desenvolvimento de seus potenciais humanos.